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Foto do escritorRosires Andrade

Sobre a Guerra de Canudos


É uma chaga, uma ferida aberta, não cicatrizável, na história do Brasil, que aconteceu no sertão brasileiro. – Rosires Andrade



Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, que viveu entre 1866 e 1909, nasceu em Cantagalo, no estado do Rio de Janeiro. Matriculou-se na Escola Politécnica, mas devido a dificuldades financeiras, transferiu-se para a Escola Militar, em 1884, de onde foi expulso dois anos após, por conta de um ato de rebeldia numa cerimônia oficial.


Ele foi um historiador, escritor e ensaísta, sendo considerado um escritor pré-modernista. Como correspondente do jornal O Estado de São Paulo, foi para Canudos, no sertão baiano, lá pelos idos de 1896, para relatar o que estava acontecendo naquele lugarejo, a Guerra de Canudos. Ele a definiu como um crime, “na significação integral da palavra”, uma acusação direta contra as ações do governo. Euclides da Cunha já não estava mais no exército.


A sua experiência na cobertura dessa guerra resultou num livro, Os Sertões, que foi publicado em 1902. Na obra, ele conta a história e a resistência das pessoas que habitavam o povoado de Canudos contra a expedição do exército republicano e da polícia.


Da Cunha retrata o sertão baiano, bem como o sertanejo e o conflito que ocorreu, e conta a história de Antônio Conselheiro, líder popular daquela comunidade.


Sobre o sertão, o autor se aprofunda bastante no tema, demonstrando um grande conhecimento da geografia, da geologia, da região, enfim. Foi, para mim, confesso, um tema bastante pesado, de difícil compreensão, que muitas vezes deixei de ler. Além do que o português de Euclides da Cunha traduz o seu enorme conhecimento da nossa língua, o que frequentemente me fez ir pesquisar significados no dicionário.


Sobre o sertanejo, é dele a famosa frase: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte”. Embora lhe falte a plástica impecável, os traços enfim de um atleta, pois é “desgracioso, desengonçado, torto”, a aparência de cansaço ilude o observador, pois dele desencadeia energias adormecidas, e “todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias”.


Fui ao dicionário (Google) para descobrir que tabaréu é um soldado inexperiente, ingênuo; e titã, figurativamente significa pessoa de força física e moral gigantesca.


O autor narra a formação do homem sertanejo, o seu sofrimento, a sua força, o seu ímpeto, o seu não desistir, independente das agruras pelas quais passa. Lembra que todo sertanejo é vaqueiro. Descreve o vaqueiro, com a sua vivência de “horas felizes e horas cruéis, abastança e misérias”. Cita e define tipos díspares, como o jagunço e o gaúcho. Este, é “o pealador valente, inimitável numa carga guerreira...”. O jagunço, por sua vez, “...é menos teatralmente heroico; é mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é mais forte; é mais duro”.


No dicionário (Google) encontrei: Pealador: significa aquele que usa o laço para prender animal.


Antônio Conselheiro, por sua vez, é considerado por Euclides da Cunha um “documento vivo de atavismo”. Novamente, fui ao dicionário para clarear o meu desconhecimento: atavismo significa reaparição de um descendente de caracteres de um ascendente remoto e que permaneceram latentes por várias gerações. Cunha considera que: “As fases singulares da sua existência não são, talvez, períodos sucessivos de uma moléstia grave, mas são, com certeza, resumo abreviado dos aspectos predominantes de mal social gravíssimo”.


Conselheiro foi o grande líder, aclamado pela multidão, que o considerava o representante natural das suas aspirações como cidadãos. No livro, toda a sua genealogia é descrita, bem como as disputas e confusões familiares, que aqui não vamos abordar. De tudo o que passou, resultou, enfim, segundo Cunha, um ser “aparelhado de sentimentos dignos”. Procurou a vida nos sertões, onde era desconhecido e nem lhe sabiam o nome. Com os cabelos crescidos até aos ombros, ostentando uma barba longa numa face escaveirada (Google: magra, descarnada, macienta...), usando um traje azul de brim americano, ele tornou-se indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se muito mal; lá ia, sem rumo, acompanhado pelo seu bastão...


Devido a esse comportamento, único, tornou-se um ser fantástico ou mal-assombrado (conforme Cunha) para aquelas populações pobres e muito simples. Passou a ser admirado intensamente e se tornou em pouco tempo um árbitro para resolver contendas/divergências entre as pessoas, sendo um conselheiro em várias decisões.


Passou a ser, então, um evangelizador. Vagou pelos sertões de Pernambuco e depois em Sergipe, aonde chegou no ano de 1874 na cidade de Itabaiana. Dali partiu para os sertões da Bahia. Vivendo de esmolas, apenas recebia do que se alimentar no mesmo dia. Dormia numa tábua dura ou mesmo no chão.


Documento da época ressaltava que Conselheiro exercia “grande influência no espírito das classes populares, servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com que impõe à ignorância e à simplicidade”. Ele rezava terços e ladainhas e pregava e dava conselhos às multidões. Isso tudo se os párocos o permitissem, pois ele passou a ser um concorrente dos representantes da igreja católica. Diz ainda o documento, “Revela ser homem inteligente, mas sem cultura”.


Por óbvio, o que era esperado aconteceu: foi perseguido e acusado de vários crimes, sofrendo até espancamento por escolta policial. Como as denúncias eram improcedentes, foi colocado em liberdade. No entanto, também esperado, a sua influência aumentou consideravelmente entre as gentes mais simples, que já tinham por ele muita admiração. Embora fosse tolerado pelos vigários, em 1882 o arcebispo da Bahia enviou uma circular aos párocos, na tentativa de pôr um paradeiro nas atividades religiosas de Conselheiro. A tentativa foi inútil.


Canudos era uma velha fazenda de gado, que ficava à beira do rio Vaza-Barris, que é um curso de água que banha os estados da Bahia e do Sergipe. Ele nasce no sertão bainao. A informação, em 1876, de um sacerdote, era de que [...lá se aglomerava, agregada à fazenda então ainda florescente, população suspeita e ociosa, “armada até os dentes” e cuja ocupação, quase exclusiva, consistia em beber aguardente e pitar uns esquisitos cachimbos de barro em canudos de metro de extensão...].


Conselheiro lá chegou no ano de 1893. Com a sua presença, houve revivescência e crescimento rápido, informa o nosso escritor. De todos os cantos começaram a surgir pessoas seguidoras e crentes em suas orientações. Casebres foram construídas, a esmo, uma tapera colossal foi criada. Até doze casas por dia eram feitas, para aquela multidão sem lares. E sem nada, talvez esperança.


Conselheiro dominava o arraial, inclusive tomando decisões de correções para aqueles que não obedeciam ao estabelecido. Cita Cunha que “Canudos era o homizio de famigerados facínoras. Ali chegavam, de permeio com os matutos crédulos e vaqueiros iludidos, sinistros heróis de faca e de garrucha”. Do Google fiquei sabendo que homizio é o ato de esconder alguém ou algo à ação da justiça. Também pode ser o lugar em que essa pessoa se esconde. Fazendas próximas foram assaltadas, vários lugarejos foram saqueados por parte dessa população.


Existia, também, a hora das rezas. O bater dos sinos chamava os fiéis para a oração ao cair da tarde. Após, ao anoitecer, as fogueiras eram acesas e, por determinação de Conselheiro, a multidão era repartida, separada por sexos, em dois grupamentos destacados.


Euclides da Cunha descreve vários personagens que participaram dessa comunidade. Todos tinham em comum uma enorme admiração e respeito por Antônio Conselheiro. Este, além de atuar como evangelizador, pregava contra a República, recentemente instalada. Mas, ressalta o escritor, não havia “o mais pálido intuito político”. As pessoas eram extremamente simples para entenderem o que era império e o que passou a ser República.


Ninguém se alimentava direito, incluindo o Conselheiro. De tal modo que a descrição dele era: “Os cabelos crescidos sem nenhum trato, a caírem sobre os ombros; as longas barbas grisalhas mais para brancas; os olhos fundos raramente levantados para fitar alguém; o rosto comprido de uma palidez quase cadavérica; o porte grave e ar penitente”, que impressionavam quem visitasse aquela comunidade. Nessa época estava com cerca de sessenta anos, um velho solitário, com corpo franzino, “arcado sobre o bordão, avançava em andar remorado, sacudido de instante a instante, por súbitos acessos de tosse”. Remorado é um adjetivo, pouco usado, que significa demorado, retardado por algum obstáculo (Google).


O governo baiano considerou ser urgente pacificar o sertão de Canudos. Havia, também, outras insurreições. Houve tentativa frusta de tentar debelar o movimento sertanejo, de início com apenas uma centena de soldados. E sem a devida e necessária programação, considerando a sobrevivência na caatinga. O primeiro combate na verdade ocorreu com o adversário atacando. A informação era de que eram muitos os combatentes ligados a Conselheiro. Exagero ou não, ouviu-se que eram três mil os alinhados. Segundo relatos oficiais, cento e cinquenta sertanejos morreram, enquanto apenas dez mortes ocorreram entre as forças do governo.


O combate se deu em Uauá, na madrugada de 21 de novembro de 1896. O governo da Bahia e o chefe da força federal naquele estado organizaram uma segunda expedição. No entanto, conta Euclides da Cunha que não havia um plano firme, nem responsabilidades definidas entre as duas autoridades, que eram independentes e iguais. E em 25 de novembro seguiram os soldados para Queimadas, a cerca de 300 km de Salvador, caminho para Canudos.


Sabedores das dificuldades que encontrariam no recontro (combate pouco demorado, contou-me o Google...), os representantes do governo estadual apelaram ao federal para envio de 4 metralhadoras Nordenfelt, 2 canhões Krupp, de campanha, e mais 250 soldados, que viriam de Aracaju e de Alagoas. As notícias eram de que o que ocorria era muito grave, devido ao número de insurgentes e, também, aos empecilhos inerentes à árida e selvagem região em que se acoitavam (de novo, do Google: refugiavam-se, confrontavam, etc...).


A descrição de Cunha nunca é resumida, ao contrário, é muito rica em detalhes, e foi o que ele fez descrevendo os embates. Direi apenas que em todas essas batalhas ocorreu o caos, com tiroteio a esmo, e pouquíssima organização. Fome e sede fizeram parte de toda essa tragédia, em todos os recontros acontecidos.


Em 29 de dezembro os expedicionários chegaram a Monte Santo. O contingente incluía 504 praças, 14 oficiais combatentes e 3 médicos, que era toda a expedição regular contra Canudos. Adicionalmente, participavam mais de 200 praças de polícia de uma divisão de artilharia. Agora, já haviam chegado 2 canhões Krupp e 2 metralhadoras Nordenfeldt. Relatou Cunha que, desejando mobilização rápida, os chefes da campanha abandonavam parte das munições, certos de uma vitória que não iria acontecer tão facilmente. As forças foram se dispersando em marcha, a partir da base das operações e pretendiam, pouco a pouco, apertar os fanáticos rebeldes e se concentrarem em Canudos. Essa partida aconteceu em 12 de janeiro de 1897.


As munições iam escasseando, bem como os alimentos. Cita o livro que nessa ida foram abatidos dois últimos bois, para alimentar mais de 500 combatentes. E foram novamente pegos de surpresa pelo inimigo que queriam combater. Os rebeldes atacavam em vozeria com os costumeiros vivas ao “Bom Jesus” e ao “nosso Conselheiro”, usando de palavreado insolente que incluía: “Avança! Fraqueza do governo!”


Houve dispêndio de munições por parte das tropas governamentais, mas conseguiram fazer a travessia que pretendiam. As perdas humanas foram 4 mortos e mais de 20 feridos. Já, entre os sertanejos, o resultado foi de 115 mortos. Posteriormente, houve um segundo combate. Novamente, houve menor perda de soldados, que foram 4, e pouco mais de 30 feridos; segundo um médico, entre os sertanejos ele contou rapidamente mais de 300 cadáveres. Mas a opção foi de retirada, embora o avançar para o arraial dos insurgentes pudesse significar a vitória (mas com muitos mortos).


E nesse vai e vem dos embates travados, onde aconteceram inúmeras mortes e feridos, dos dois lados, com a população sofrendo com sede e fome, foram prosseguindo as batalhas, detalhadamente narradas por Euclides da Cunha. A Guerra de Canudos foi um embate entre os sertanejos habitantes da cidade de Canudos e o exército brasileiro, e conta-se que morreram mais de 25 mil pessoas.


Antônio Conselheiro foi um líder religioso. Os seus seguidores deixaram todo o pouco que tinham, para trás, e foram morar em Canudos para acompanhar e conviver com quem acreditavam que os defendia e representava os seus direitos. Conselheiro, por sua vez, se considerava um messias, enviado de Deus para salvar o povo nordestino.


E ele criticava a concentração de renda, a falta de terras, a miséria e o abandono das populações rurais do interior brasileiro, do sertão nordestino. Pode-se dizer que a situação foi o resultado do processo colonizador nacional, onde latifúndio e oligarquia eram corriqueiros, com muito para muito poucos e pouco para muitos, a grande maioria.


A Guerra aconteceu de 7 de novembro de 1896 até 5 de outubro de 1897, e foi uma das maiores em nosso país. O resultado foi a destruição do arraial, onde todas as casas foram incendiadas, os sertanejos e prisioneiros civis foram exterminados. A história relata que ocorreram abusos sexuais (isso é costumeiros em todas as guerras), mulheres e crianças foram degoladas e a prostituição se instalou. É uma chaga, uma ferida aberta, não cicatrizável, na história do Brasil, que aconteceu no sertão brasileiro.



Referência

Cunha E. Os Sertões. Londrina: Livrarias Família Cristã, 1ª ed. 2021. ISBN 978-65-88843-20-8. 516 p.



Rosires Andrade

Em 02/05/2023.


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86 visualizações2 comentários

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2 Comments


Unknown member
May 04, 2023

Parabéns Dr. Rosires.

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ednanunes.escritos
May 03, 2023

Bela resenha, professor!

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